O recém-lançado Lar
de Orates, livro composto por noventa e quatro poemas de Saulo Santiago,
personalidade criada por seu criador Gustavo Moretti, chega ao mercado livreiro
em meio a um momento mundial em que ler poemas pode se tornar um alento no dia
a dia de expectativas, anseios e incertezas. Sabe-se que a poesia e as suas
entrelinhas trazem, a quem as ler, um eu-lírico de quem escreve, sendo,
portanto, oferecidas sentimentalidades, percepções, minúcias. E é o que bem faz
a obra de Saulo. Ou seria de Gustavo?
Antes de avançarmos na
obra, no autor e em sua criação, há de se esclarecer essa questão dos nomes uma
vez que quem efetivamente escreveu a obra foi Gustavo Moretti, mas quem assinou
a obra foi Saulo Santiago, portanto, um heterônimo, isto é, uma personalidade
criada por um autor por razões que só o próprio autor pode dizer, o que em
seguida saberemos, com o bate-papo que teremos com Gustavo. O heterônimo não é
o pseudônimo, pois um pseudônimo é apenas um nome fictício sem a construção de
uma personalidade “real”. E para quem quiser saber mais sobre heterônimos, há
estudos sobre o assunto, a heteronímia.
Pois bem: Lar de Orates está dividido em oito
capítulos e visivelmente traz em suas páginas reminiscências de Gustavo, quiçá
também de Saulo, ou de Santiago e de Moretti. Os poemas constituem uma
arquitetura aproximada a que poetas como Haroldo de Campos, Décio Pignatari e
alguns outros concretistas do período trouxeram em suas obras. E também
referenciam artistas da música, como, por exemplo, “se duvidar derruba”, que está
dedicado para a baiana Gal Costa e notadamente referencia “Vapor barato”, poema
escrito por Wally Salomão e musicado por Jards Macalé, portanto, música, por
sua vez interpretada por Gal.
Há ainda na obra poemas
que podem ser emoldurados em outros autores nossos, como, por exemplo, o poema
“fobia social”, que retrata o medo de espaço público, o anseio pelo fim (fim de
quê?), e pode ser remetido à personalidade de Dalton Trevisan, autor conhecido
por suas excentricidades de andar sozinho pelas ruas de Curitiba, em geral
pelas noites, e que criou para si essa fobia social. Mas não só ele, pois no
Rio de Janeiro, na música, o saudoso poeta e músico João Gilberto ficou célebre
por suas ausências públicas e por sua personalidade claustrofóbica.
Por fim, a obra de Saulo,
criação de Gustavo, traz, segundo o próprio criador uma gramática moral da
loucura, apresenta formas e linguagens que se estabelecem ou querem se
estabelecer por conexões, expressa e avaliza que a arte existe por que a vida
não basta, provoca dizendo que tudo pode não passar de mentiras, enfim, é para
nos orientar mais que Gustavo Moretti nos conta sobre a sua criação, sobre a
sua obra e também sobre a sua vida.
Gustavo, Lar de Orates, por que esse título? E o
que é e ou foi uma Casa de Orates?
- Casa de Orates, como registra o escritor Machado de
Assis em "O alienista", designava hospício. Um espaço que foi
construído historicamente a serviço da normatização, do sequestro e da
repressão das subjetividades. Por outro lado, o lar é extensão material
imediata de nossa subjetividade, cada um com sua lei, é nosso refúgio de
liberdade. O título é um convite à loucura, essa parte nossa que tentamos
expulsar de nossos lares - que sem ela são apenas casas.
Você pode nos dizer
de onde partiu a sua iniciativa de criar uma nova personalidade e então
apresentar Saulo Santiago, seu heterônimo?
- Há uma série de
respostas possíveis. Acho importante mencionar primeiro a que não tenho. Em
seguida, a renúncia ao ego, fonte de muito sofrimento. Mais interessante é
pensar no fenômeno dos heterônimos que, para mim, transcende a poesia. Heteronomia, na filosofia, se opõe ao conceito de
autonomia, refere à sujeição do indivíduo à vontade de terceiros ou da
coletividade. Na literatura, trata-se de criação intelectual do artista. O que
se pressupõe de um heterônimo literário seria, portanto, a autonomia da
consciência de quem o cria, justamente o contrário da heteronomia. No interior
dessa contradição acredito existir um fator fundamental na proliferação dos
transtornos mentais em nosso tempo.
Você narra em sua
biografia que teve uma breve passagem em um manicômio, você diz ter tido uma
breve estadia manicomial. Pode nos falar mais sobre isso?
- Devo falar mais
sobre isso. E ainda falaremos todos muito sobre isso. Há uma pandemia de
transtornos mentais em curso que só vai crescer mais e mais. O hospital
psiquiátrico e a medicamentalização não são a solução, são antes a causa, e
todos teremos que enfrentar essa realidade.
Gustavo, qual a
importância da poesia em sua vida? E qual deve ser a importância de seus poemas
para as pessoas?
- A poesia é uma
parte importante da minha vida, como é meu trabalho como professor, minha
família, minhas amizades, o futebol, o trânsito, o voto, o banho. A poesia é um
olhar sobre as coisas, uma oportunidade para Ser. Mas não é tudo. Não pode ser
tudo. Manuel Bandeira já nos ensinou que tudo o que amamos são pedaços vivos do
nosso próprio ser. Existe sim muito amor no mundo. Mas existe muito mais que
não é amor. E não dá para fugir disso. A poesia não salva, a poesia não é fuga.
A poesia é uma das armas para desfrutar e enfrentar a vida. Sobre o que deve
ser para as pessoas, só elas podem responder.
Gustavo, e para
Saulo, qual a importância da poesia em sua vida? E o que podemos esperar de
Saulo? Teremos mais obras, o que, segundo você, o futuro destina a seu
heterônimo?
- Para o Saulo,
acredito que a poesia é síntese, no sentido de continuidade. É através da
poesia que o Saulo questiona as verdades da ciência. Questionamento sem
pretensão de verdade, mas como exercício de profissão médica, exercício da
racionalidade e dos afetos, exercício vital. O encontro com o Saulo foi algo
extraordinário, desses encontros banais que ninguém vê, ninguém liga, que mudam
os rumos de nossas vidas, que carregam a eternidade do instante. Ele segue o
caminho dele e eu sigo o meu. Onde vai dar não sabemos. Quem sabe a gente se
reencontra.
Por que noventa e
quatro poemas e por que oito capítulos? Há algum motivo em especial? Ou simplesmente
aconteceu e assim ficou?
- A organização do
livro é expressão formal da loucura. Os capítulos são a arquitetura desse lar
de Orates e os poemas são as vozes. A circulação pelo espaço é tão aleatória
quanto a natureza. Existe motivo por trás das formas que nos cercam? Vai de
quem sente. De quem lê. De quem interpreta.
Lar de Orates, publicada em 2021,
traz para leitores e leitoras um eu-lírico duplicado, isto é, apresentado por
um heterônimo e pensado por um criador, portanto, uma experiência
lírica-poética em busca de perguntas e respostas, um lugar, segundo o próprio
autor (autores?), de inspiração e de expiração.
Sobre
o autor:
Saulo Santiago é poeta,
psiquiatra e psicanalista, filho de argelinos residentes na França, nasceu no
interior de uma aeronave, no translado de Madagascar à Amazônia, no justo ponto
de latitude e longitude em que o cordão umbilical cruzava a linha do Equador e
o meridiano de Greenwich. Seus pais, que também eram médicos, vinham ao Brasil
por ocasião de um seminário sobre o xamanismo e sua relação com drogas
alucinógenas.
Sobre
o criador:
Gustavo Moretti Duarte nasceu em São Paulo em 1993. Professor autônomo, fundou seu curso pré-vestibular em 2015, onde leciona redação e literatura. Diagnosticado com os mais rentáveis transtornos mentais catalogados pela psiquiatria, conheceu seu heterônimo Saulo Santiago durante breve estadia manicomial. Lar de Orates é expressão de seus habitantes.